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quinta-feira, 8 de julho de 2010

Teatro de Quinta - Por Biagio Pecorelli (be.)

O CÂNDIDO E O CRUEL.


O poeta Manoel de Barros, com seu Menino do Mato, me disse certo dia espantosamente, quando eu estava no ônibus: “Pra meu gosto a palavra não precisa significar — é só entoar.” Seria demais extrair deste poema algo de artaudiano, dado que o poeta matogrossense, com absoluta certeza, não se referia em nada ao Teatro da Crueldade, nem a nenhum outro teatro, quando revelou o seu encantamento pela palavra. Mas se o melhor da linguagem poética é extorquir o poema de si, sem que com isso firamos necessariamente a sua essência — ao contrário, realizamos a essência do poema ao incompreendê-lo completamente — aqui vou eu.

De fato, há pouco a se dizer da crueldade (conceito caríssimo a Artaud) em um poeta tão belamente pueril e doce como Manoel de Barros, do mesmo modo como me parece forçoso extrair candura de um homem atordoado como Artaud, de onde partiram versos como “Onde cheira a merda / cheira a ser.” Quando este concluiu a sua principal obra “O teatro e seu duplo” (Le Théâtre et son Double), em 1935, na França, Manoel de Barros ainda nem lançara, aqui no Brasil, o seu livro de estreia “Poemas concebidos sem pecado”, que é de 1937. Mas o meu espanto com o verso que deu origem a este artigo é porque ele revela como o ator e diretor francês e o poeta brasileiro frequentam a mesma atmosfera de encantamento pela palavra enquanto fenda, abismo de sentidos. Em ambos, a arte não pode deixar de ser epifania e por isso atacam, cada qual do seu jeito, o racionalismo que dominou não só o teatro, mas também a literatura durante o século XIX, e que, ainda hoje, a despeito de todas as vanguardas e pós-vanguardas que se proliferaram no século XX, permanece em voga, ao menos no mainstream da literatura mais vendida e do teatro comercial. Tal encantamento aparece, tanto em Artaud quanto em Manoel de Barros, como um insistente chamado mítico e uma profunda relação com o divino e com a natureza (ritual e primitivismo).

Mas o que é o Teatro da Crueldade senão a poesia crua no corpo do ator? Enganam-se os que acham que Artaud era contra a palavra. Seu ataque se dirigia à palavra enquanto locus da razão, a palavra enquanto discurso, o texto enquanto origem e destinamento do teatro. O teatro, para Antonin Artaud, deveria ser o teatro e sua profunda sacralidade, para que mais? Se há palavra, que ela também esteja a serviço desta tarefa maior, que é a de provocar “abalos sísmicos no ser”. Manoel de Barros, que nada tem de cruel nem de ator, possui, em seu Menino do Mato, a surpreendente capacidade de provocar esses mesmos abalos, só que usando a força de sua meninice, de suas “ignorãnças” e das de Bernardo, e de tudo que “desvê” em pedras, passarinhos, pedaços de formigas e moscas no chão. “Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra” — diz Manoel. Logo também não é qualquer palavra que atrai o olhar do Menino do Mato, mas só as “palavras de ave”.

Na perspectiva do Teatro da Crueldade (que deveras é de um irracionalismo linguístico muito mais radical que o de Manoel), a palavra jamais estará condicionada ao discurso. A voz configura som, antes de palavra, e deve, enquanto som, tomar todo o corpo do ator cruel, como uma peste que o inflama. Trata-se, de fato, de um verdadeiro “atletismo afetivo”, não como um processo biomecânico frio, mas como um ritual de presença dos atores consigo mesmos, com os deuses e com o púbico. Eis, certamente, o mais desafiador no Teatro da Crueldade: essa presença que não é apenas técnica, e ousaria dizer que pouco tem que ver com técnica, sendo antes de mais nada transcendência. Uma verdadeira combustão física e psicológica do ator para o infinito, quando, em sacrifício, se oferece aos leões do palco. Aos que não têm coragem para tanto, aconselho uma tranquila e encantadora leitura de Menino do Mato, do poeta Manoel de Barros, o que já está de bom tamanho.

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Livro: Menino do mato (Ed. Leya, 2010)
Autor: Manoel de Barros
Gênero: Poesia.
Valor aproximado: R$ 20,90 (novo)
Livro: O ator e seu duplo (Ed. Martins Fontes, 2006)
Autor: Antonin Artaud
Gênero: Teatro.
Valor aproximado: R$ 42,50 (novo)

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