Visitas

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Curta no Quarto - por Biagio Pecorelli

PARA VER DE OLHOS FECHADOS



O universo onírico é mesmo um tema privilegiado na obra de Maya Deren (1917-1961). A cineasta ucraniana, radicada nos Estados Unidos, é uma referência incontornável na história do cinema experimental mundial e, especialmente, no chamado “trance film” (filmes experimentais que exploram personagens deambulando num espaço-tempo de sonho). Produziu entre os anos 40 e 50 obras primas que misturam cinema, dança e mise en scène ao sabor daquilo que já haviam apregoado as vanguardas artísticas do início do século, neste caso, com particular sintonia, o surrealismo.

A obra de Maya Ritual in Transfigured Time, de 1946, traz uma jovem (Rita Christiani) perplexa diante de pessoas, gestos e lugares que cruzam seu caminho sem razão aparente, como num sonho do qual não pode escapar. São homens e mulheres que trazem à protagonista e ao espectador um forte componente erótico, onde medo e desejo se confundem e atordoam a jovem, por vezes procurada, por outras ignorada, por fim perseguida. O tema da perseguição, aliás, é caro à obra de Maya e já aparece marcantemente no seu mais famoso filme Meshes of the Afternoon, de 1943, transparecendo algo no qual a psicanálise de Sigmund Freud fora contundente: a perseverança implacável dos conteúdos recalcados, dos traumas psíquicos vividos, que se manifestam exemplarmente nos enigmas do sonho.

Afora tudo isso, em seu permanente diálogo com a dança, Maya Deren dirige seus espectros de modo que seus gestos, em princípio cotidianos e naturalistas, tornem-se absurdamente cênicos, dançados, até perderem por completo a referência à realidade (mimesis). A protagonista é que parece se manter numa coerência gestual afetada, mera ponta do iceberg a qual Freud se referira como consciência, ou quem sabe metaforize a situação do próprio realismo e da arte mimética em meados do século XX, diante da repercussão das vanguardas. As dimensões temporal e espacial, tal como quando sonhamos, também são totalmente subvertidas por Maya, que faz (a despeito da precariedade dos recursos cinematográficos da época em relação ao que vivemos no cinema hoje) mudanças contínuas de fundo (espaço) e congelamentos de imagem (tempo) que soam ao espectador como golpes da memória, fotografias inesquecíveis, manchas indeléveis no psiquismo. Em Ritual in Transfigured Time a protagonista procura se livrar de um homem dançarino (Frank Westbrook) correndo. Mas este, que não corre senão dançando num balé que parece deveras irreal, alcança sempre o seu caminho como um destino.

A fruição dos objetos artísticos a partir do século XX exige uma percepção que nem sempre estamos dispostos a experimentar - embora já centenária -, livre das tentativas de interpretação lógica que nos são naturais enquanto espécie supostamente pensante. Obras como Ritual in Transfigured Time, de Maya Deren, espraiam-se pelas profundezas da (in)consciência e nos pedem, gentilmente, um fechar dos olhos, ainda que precisemos estar de olhos bem abertos para a imagem. Só assim, sonhando, nos é possível confrontar os seus enigmas, suas relações desconcertantes, os mitos que, afinal de contas, estão na origem da obra de arte e, por que não dizer, da própria condição humana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário